terça-feira, 22 de agosto de 2017

O QUE É O SHEKINÁ? A BÍBLIA FALA SOBRE ISSO?

Logo de início, devemos estar cientes de que as pessoas adoram uma polêmica, especialmente sobre assuntos cujo conhecimento demande uma pesquisa mais extensa do que ler meia página de um livro. Isso demonstra, no mínimo, uma ausência de seriedade intelectual. São feitas afirmações sobre algo que esteja - ou não esteja - na Bíblia, que ela ensine (ou não)? Então recorramos a Bíblia! Recorramos à pesquisa e leitura, conferindo nas Escrituras como os crentes de Beréia faziam (At 17.11). Se necessário, recorramos a outras fontes, sempre comparando, analisando, refletindo e julgando toda informação e conhecimento à luz da Revelação. Afinal, a fé em Cristo é a fé que tem base nos registros históricos e proféticos compreendidos na coleção de Livros Inspirados por Deus chamado Bíblia Sagrada, o cânon, a medida de comparação daquilo que é espiritual.

Eu particularmente gosto muito de conferir todas as coisas, todos os ensinos ditos bíblicos ou derivados da Bíblia. Tenho por hábito fazer assim, não aceitando nada sem conferir. Ler, estudar, esmiuçar o assunto até me dar por satisfeito, até ter a confirmação de que aquilo que está sendo propalado como "bíblico" ou "não-bíblico" é de fato assim (ou não). Esse é o papel de todo Mestre na Palavra de Deus - filtrar todos os ensinos ditos "de Deus" - até os seus mesmos! - de forma a ensinar à Igreja apenas a boa, perfeita e agradável vontade de Deus. A função do Mestre é, por assim dizer, de "destilar a doutrina" (Dt 32.2), removendo dela as impurezas humanas e não raro as impurezas demoníacas para só então ministrá-las ao Corpo de Cristo.

Assim, nessa argumentação, meu objetivo é abordar uma recente polêmica acerca do termo "shekiná", levantado no site http://www.previnasedamarca.com/arquivo.php?recebe=materia/judaismo/37/37.html e que vem sendo compartilhada em redes sociais. Segundo o website, o termo shekiná seria o nome de uma "demônia" (?!?), derivado da cabala judaica, sendo "a grande rainha do céu", "Lilith" e similitudes. Toda a linha de raciocínio utilizada para chegar a esta conclusão tem como base a própria cabala, textos rosacrucianos, textos maçônicos, etc.. Aqui, vamos preencher esta lacuna, ou seja, fazer uma análise à luz da Bíblia e de suas ferramentas (comentários, dicionários, etc).

Shekiná é comumente compreendido nos círculos evangélicos como sendo a "manifestação visível da glória de Deus", "a presença da glória de Deus"

1. O Termo Shekiná:

Este termo não aparece com essa grafia na Bíblia. Não existe na Bíblia a palavra "shekiná" (ou shechiná). O termo que aparece na Bíblia, do qual deriva-se esse termo, é "shachan" (aparece em Êx 40.35, traduzido para o português como "permanecer" - outros sinônimos são "residir ou ficar permanentemente - permanecer, continuar, morar, ter habitação, habitar, estabelecer, colocar (manter), descansar, definir"), do original שָׁכַ֥ן (sh-k-n). Muitas são as formas e transliterações desse termo.  Como "estabelecer, permanecer", o termo aparece ligado a pessoas (p.ex. Nm 24.2; Sl 102.29; I Cr 17.9; Jr 23.6, etc.), a animais (p.ex. Dt 33.20; Is 34.11; Ez 17.23, 31.13; Sl 55.7, etc), a coisas (p.ex. nuvem - Jó 3.5; Êx 24.16, 40.35; Nm 9.17; etc),  de homens (Sl 37.27; Is 65.9; Jó 18.15, 30.6; Jr 14.28; etc), dos mortos (p.ex. Is 26.19; Jó 4.19; etc), de Deus (p.ex.  I Rs 8.12; II Cr 6.1; Is 33.5, 57.15; Dt 33.16; etc). Como "fazer estabelecer, estabelecer", o termo aparece em  Dt 12.11; 14.23; 16.2,6,11; 26.2, etc.
Há um total de 128 ocorrências de sh-k-n (e suas variantes, como os termos shaChanta, shaChanti, shaChen, shacheNah, shacheNu, sheChon, shikKanti, shikKen, shochanT, shoChen, shocheNei, shocheNi, dentre muitos outros) na Bíblia.

Como visto, apesar de ser hebraica, a palavra "Shekinah" ocorre com maior freqüência nas versões aramaicas, uma vez que foram destinadas ao povo e foram realmente lidas para eles, e como precauções que deveriam ser tomadas contra possíveis mal-entendidos em relação à concepção de Deus. A palavra "habitação" no texto hebraico é, portanto, processada no Targumim pela frase "deixe o Shekinah descansar" (p.ex. Êx 25.8; 29.45,46; Nm 5.3; etc).

2. Análise de passagens selecionadas, usadas para embasar o shekiná como manifestação visível da glória de Deus vindo sobre os homens:

a) Êxodo 40:35 - "De maneira que Moisés não podia entrar na tenda da congregação, porquanto a nuvem permanecia sobre ela, e a glória do Senhor enchia o tabernáculo". (ACF) Note que o termo sh-k-n não é traduzido por glória (heb. kabowd). Em Êxodo 40:35 lemos que a "a nuvem permanecia (shakan) sobre a tenda do tabernáculo" e "a glória (kabowd) do Senhor enchia o tabernáculo". Se adotarmos uma interpretação causa-efeito, podemos afirmar que a glória enchia o tabernáculo como consequência da nuvem do Senhor permanecer sobre ele. Episódio semelhante é relatado em Números 16:42, mostrando a mesma sequência lógica. Por isso, é fácil ver o termo "shekiná" confundido com o termo "glória". Diria que trata-se de desconhecimento (em muitos casos) ou de relação metonímica (para aqueles que compreendem o significado do termo shekiná).   

b) II Crônicas 7:1,2 - "E acabando Salomão de orar, desceu o fogo do céu, e consumiu o holocausto e os sacrifícios; e a glória do SENHOR encheu a casa. E os sacerdotes não podiam entrar na casa do Senhor, porque a glória do Senhor tinha enchido a casa do Senhor." (ACF) (ver também I Reis 8:11; II Cr 5.14). Nessas passagens sequer há menção do termo sh-k-n. Esse termo simplesmente não aparece nesses textos. O que aparece aqui é o termo glória (kabowd). A mesma análise pode ser obtida a partir dos textos de Êxodo 16:10, 24.17, 33.22, etc. 

c) Êxodo 24:15,16 - "E, subindo Moisés ao monte, a nuvem cobriu o monte. E a glória do Senhor repousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu por seis dias; e ao sétimo dia chamou a Moisés do meio da nuvem." (ACF) Aqui, a glória (kabowd) do Senhor repousou (shakan) sobre o monte. Novamente, a glória associa-se com a nuvem como em Êx 40.35. Vale dizer que a nuvem podia ser vista, mas nada pode-se concluir a esse respeito da glória. John Gill, em seu comentário "Gill's Exposition of the Entire Bible", explica que houve nesse episódio a manifestação da "shekiná ou majestade de Deus" (com isso, dando o significado de majestade ao termo shekiná). 

3. De onde surgiu o termo Shekiná?

She-ki'-na (shekhinah, "o que habita", do verbo shakhen, ou shakhan, "morar", "residir") aparece originalmente apenas nos Targuns (cf. "International Standard Bible Encyclopedia", 1915).  Conforme explica o Pr. Matt Slick no site CARM (Christian Apologetics & Research Ministry), "a glória Shekinah de Deus se refere à presença pessoal de Deus. A palavra Shekinah não ocorre no Antigo ou no Novo Testamento nas línguas originais. No entanto, ele entrou na teologia cristã como um termo dos targuns e literatura rabínica depois que o Antigo Testamento foi concluído e antes do início do período do Novo Testamento. Foi usado para descrever a própria presença de Deus". Portanto, foi usado pelos rabinos em referência à presença do Senhor entre o seu povo (Êxodo 19: 16-18; 25: 8; 40: 34-38; 1 Reis 6:13). Os rabinos usaram o termo em referência à glória de Deus que enche o templo (2 Crônicas 7:1), a sua presença na nuvem (Êxodo 14:19; 1 Reis 8: 10-13), e a sua habitação no monte (Salmo 68:16-18; 74: 2; Isaías 8:18; Joel 3:17). Outra maneira de descrevê-lo seria usar o termo "glória de Deus", uma vez que a frase é usada para descrever sua presença (Salmo 19:1; Ezequiel 43:2; Lucas 2:9; Atos 7:55).

Uma lista de correspondências entre os Targuns Onkelos / Jonathan Ben Uziel e NKJV onde aparece o termo Shekiná pode ser vista em http://aramaicpeshittant.com/shekinah-targum-list/. Exemplo: 
  • Tagum - Êx 33.14: And He said, My Shekinah shall go, and I will give thee rest. (tradução: E disse, Minha Shekinah irá, e eu vou te dar descanso).
  • NKJV - Êx 33.14:  And He said, “My Presence will go with you, and I will give you rest.” (tradução: E disse, Minha Presença irá com você, e eu vou dar-lhe o descanso).
A obra intitulada "The Targum of Zephaniah: Manuscripts and Commentary" relata que a ideia do "Shekhinah" foi desenvolvida na época do Segundo Templo e é inerentemente a Presença Divina acompanhada dos atributos de misericórdia, santidade e luz. Ela é a Divina afirmação da proteção sobre Israel em Sua (isto é, de Deus) terra. Enquanto Deus "habitar" dentro do Templo e Israel, nenhum dano pode acontecer com eles a menos que se rebelem contra o Senhor. Na literatura rabínica, a Shekhina está associada a vários outros termos religiosos e teológicos (como o termo "Memra", "a Palavra", no sentido da palavra ou fala criativa ou diretiva de Deus que manifesta o Seu poder no mundo da matéria ou da mente; um termo usado especialmente no Targum como um substituto do "Senhor" quando uma expressão antropomórfica deve ser evitada). Conforme a Enciclopédia Britância, "a Shekhina desceu no tabernáculo e no Templo de Salomão, embora também seja dito que era uma das cinco coisas que faltavam no Segundo Templo. A glória de Deus que encheu o tabernáculo (Êxodo 40:34) foi pensada como um resplendor brilhante, e a Shekhina às vezes é concebida de forma semelhante". Para registro, as "5 coisas que faltavam no Segundo Templo" eram: (1) o fogo (que foi aceso do céu); (2) a arca; (3) o oráculo do sacerdote (urim e tumim); (4) o óleo da unção e (5) o Espírito Santo (o Espírito da profecia). 


Resumidamente, shekiná seria a junção da glória de Deus e de Sua presença. Quando o Senhor está presente, Sua glória é manifesta. Isso seria o que chamamos shekiná. Um termo teológico, portanto, que descreve a presença imanente no mundo do Deus transcendente. (Elwell, Walter A., and Philip Wesley Comfort. Tyndale Bible Dictionary. Tyndale Reference Library. Wheaton, IL: Tyndale House Publishers, 2001).  O termo foi usado pelos rabinos no lugar de "Deus", onde as expressões antropomórficas da Bíblia já não eram consideradas adequadas (cf. Jewish Encyclopedia, http://www.jewishencyclopedia.com/articles/13537-shekinah); em alguns casos, foi usado em substituição ao nome de Deus (cf. Carol A. Dray. Studies on Translation and Interpretation in the Targum to the Books of Kings). Justamente por ser um termo teológico, Shekiná não é encontrado na Bíblia, do mesmo modo que se dá com outros termos teológicos (como trindade, imanência, ser teantrópico, união hipostática, etc). Porém isso não significa que ele seja antibíblico.

Na literatura judaica, "o Espírito Santo" surge em conexões onde "a Presença" é empregada em outros lugares, sem qualquer aparente diferença de significado.  Assim, é dito no Tanhuma que até o templo ser destruído, a shekinah foi colocada no templo ("O Senhor está em seu templo sagrado", Salmo 11.4); após a destruição do templo, o shekinah ascendeu ao céu ("O Senhor, no céu é o seu trono", ibid.). Compare com Koheleth Rabbah na Eccl. 192,7: "Quando Jeremias viu que Jerusalém foi destruída, e o templo queimou, e Israel foi para o exílio, e o Espírito Santo retomou", etc. A interação é especialmente freqüente em referência às pessoas a quem o Espírito ou a Presença vem, ou sobre quem repousa. Um bom exemplo é o Tos. Sotah 13, 3 em comparação com Bab. Sotah 48b; Sanhedrin Ila. No primeiro, a voz do céu declara que uma das empresas é digna de ter o Espírito Santo sobre ele; o Talmud tem 'o shekinah'. (cf.
MOORE, George Foot. Intermediaries in Jewish Theology: Memra, Shekinah, Metatron. Harvard Theological Review, v. 15, n. 1, p. 41-85, 1922.)
4. Conclusões.
 
Conforme as referências consultadas, o termo Shekiná foi cunhado nos Targums (constando ainda no Midrash, no Mishnah e no Talmude)  para explicar as ações de Deus no Tempo e espaço através de um agente manifesto. Eles tinham por objetivo explicar as Escrituras para pessoas "leigas", de forma que pudessem compreendê-las. Assim, os Targuns tinham a mesma função dos nossos comentários bíblicos modernos. É bom relembrar que essa tarefa não era simples. Como explicar a transcendência e imanência de Deus à luz do monoteísmo bíblico? Como explicar que "Deus habita com o Seu povo" sendo Ele transcendente, de forma a não confundir imanência com animismo? Para isso foi cunhado o termo Shekiná, trazendo em si a idéia do antropomorfismo - por exemplo, no verso "Senhor Deus de Israel, não há Deus como tu, em cima nos céus nem em baixo na terra" (versão de Almeida) para "Senhor Deus de Israel, não há Deus como tu, cuja Shekiná está em cima nos céus e que governa a terra em baixo" (Targum). Vale dizer que a Bíblia está repleta de linguagens antropomórficas acerca de Deus. Portanto, os Targums usaram esse termo (e outros) para se referir à auto-revelação de Deus. Obviamente, o termo Shekiná traz em si fortes implicações cristológicas.

No Novo Testamento, Jesus Cristo é a morada da glória de Deus. Colossenses 2: 9 nos diz que "em Cristo toda a plenitude da Divindade vive na forma corporal", fazendo com que Jesus exclamasse a Filipe: "Quem viu-me viu o Pai" (João 14: 9). Em Cristo, vemos a manifestação visível de Deus mesmo na segunda pessoa da Trindade. Embora Sua glória também tenha sido velada, Jesus é, no entanto, a presença de Deus na Terra. Assim como a Presença divina morava em uma tenda relativamente plana chamada "tabernáculo" antes que o Templo em Jerusalém fosse construído, a Presença também habitava no homem relativamente simples que era Jesus. "Ele não tinha beleza ou majestade para nos atrair para ele, nada em sua aparência que devemos desejá-lo" (Isaías 53: 2). Mas quando chegarmos ao céu, veremos tanto o Filho como o Pai em toda a sua glória (1 João 3: 2). No Novo Testamento, Jesus é o Shekiná de Deus.
Qualquer correspondência entre o fato do termo Shekiná ser feminino com um suposto demônio do sexo feminino, como postulou o(a) autor(a) do artigo no site da internet se realmente existir deve-se tão somente ao esoterismo cabalístico ou a outras fontes igualmente esotéricas, fato este citado pelo(a) próprio(a) autor(a) desse texto. Isso facilmente pode ser constatado já na afirmação sobre "demônias". É preciso perguntar: espíritos tem sexo? O fato de um termo não estar na Bíblia faz dele um termo antibíblico só porque uma fonte esotérica faz uso do mesmo? 

Estudar, ler, conferir, pensar... ver e rever, até ter clareza suficiente sobre o assunto. Assim deve proceder todo aquele que estuda algum assunto, especialmente aqueles assuntos que são milenares, como o cristianismo, o judaísmo, etc.  Sempre pode haver mais de um uso para um determinado conceito, mais de uma aplicação, dependendo do autor.

Pense nisso. Deus está te dando visão de águia!